Capítulo IV – Nômade
Cailean despertou devagar, sentia-se tonto ainda e uma pontada de dor de cabeça no lado direito. Estava enrolado em uma coberta de lã e em uma cama de palha, bastante rústica, olhando para o teto via tecidos e madeira. Ao seu redor apenas uma pequena mesa com diversas coisas em cima, desde pedras a frutas, do outro lado um lugar onde se sentar. O chão era uma tapeçaria de couro e em um dos cantos. Muitas sacolas de tecido e couro abarrotadas com coisas que ele não saberia dizer o que é.
Ao aprumar mais sua visão, uma das sacolas na realidade era uma senhora sentada acocorada. Tinha longos cabelos castanhos e um vestido de tons de terra. Olhava-o por cima da semente que descascava. Ele sentou-se em um pulo.
– Calma, meu jovem – disse ela, a voz antiga, quase um sussurro – Estou aqui a descascar uns frutos de acaiúra pra por nesse pão de centeio. Adoro pães e acaiúra, você não? Sem falar que ela vai eliminar as toxinas dos aneth que você comeu. Que, sinceramente, não sei como ainda teve forças…
– Me chamo Cailean, mas quem é a senhora? – Perguntou Cailean, sentindo que de fato estava com tanta fome que comeria as acaiúras até mesmo com casca. Mas não antes de saber então se eram seguras, pela lição aprendida.
– Ah, meu jovem. Desculpe os mal jeitos dessa velha – disse ela – Mas na verdade me dão muitos nomes… Sine, Siùbhan, Cior, Marsaili, Muireall…
– Muireall?! – exclamou ele.
– E esse particularmente é o que mais gosto – disse ela.
– A Anciã Nômade de Wolnard? – Cailean se empertigou na cama, quase como se tivesse visto um titã novamente. – Mas… Mas…
– Eu sou só uma lenda? – Completou Muireall – Bem, para muitos eu sou. Mas cá estamos, conversando enquanto preparo seu café.
– Me contaram desde menino que você vaga pelas terras de Wolnard quase desde o início dos tempos, que surgiu entre os primeiros andantes, criados pelos Primordiais. – Continuou Cailean, empolgado – Isso, isso é verdade?
Muireall parou de descascar as frutas e o olhou por um segundo. Suspirou e disse:
– Os Primordiais me criaram sim, mas não da maneira que contam. Eu não brotei do chão ou nasci de uma árvore – apesar de que poderia ser… Aconteceu que naquela época Wolnard era muito mais selvagem. As tribos que por aqui andavam nem imaginavam em se organizar e estabelecer vilas ou cidades, nem cultivar a terra, muito menos comercializar seus feitos ou mesmo socializar com quem quer que fosse de fora. Isso fazia de nós caça e caçadores. Eu era apenas um bebê quando minha tribo foi exterminada em um conflito. Minha mãe, em um último ato desesperado de me salvar, me escondeu em um galho de salgueiro. Após a batalha, o titã Eirene encontrou meu pequeno corpo já quase sem vida. Ele me levou à presença do próprio Biaeë, que me deu a inalar seus esporos, pois foi a maneira que ele encontrou para nutrir meu corpo já que não haveria outra forma daquele bebê moribundo sobreviver. Eu não me lembro de nada disso, mas eu cresci na presença de Eirene e essa história eu ouvi dele…
Ao que Cailean se surpreendeu.
– Sim, eu me comunicava com os titãs. Talvez a primeira Sync na existência. Com o tempo segui meu caminho, pois os assuntos dos titãs também só a eles interessa. Mas os esporos de Biaeë são por demais poderosos para agregar vida. Isso me aconteceu há pelo menos 200 séculos… – Cailean empalideceu.
– E de tudo o que eu vi, um outro jovem como você me chamou a atenção. Com ele fiz amizade e ensinei muitas coisas. Ele era um bom ouvinte, obstinado e um pouco rebelde, mas tinha uma tremenda força interior e um senso de justiça como nenhum outro.. Coisas que sinto em você também, à sua maneira. Ele se tornou um excelente escultor das energias elementais. Fez coisas grandes e valorosas. A ele chamavam de Uilleam, Uilleam Glass. A última vez que o vi foi voando em um Veboros. E isso foi há muito, muito tempo.
– Um Veboros? – falou baixinho Cailean
– Sim, um Veboros – Disse ela – Você já viu um, não foi? – Cailean anuiu devagar.
Muireall levantou-se e pôs-se a procurar algo em uma sacola ao seu lado. Revirou seu interior por uns segundos e de lá retirou um pequeno colar, feito de corda e na ponta, amarrado, um cristal arroxeado. Ele tinha um brilho indefinido, ora interno, ora externo. Sem dúvida uma pedra mágica a qual Cailean jamais tinha visto.
– Quero dar isto a você – Disse Muireall – É um cristal elemental. Através deles suas habilidades como Sync podem ser canalizadas e porfim, sincronizar com um titã.
– Mas, mas… – balbuciou Cailean, achando aquele presente algo extraordinário demais, senão único.
– Acredite, Cailean, este não é o primeiro e nem será o último cristal elemental que verei. Pegue-o, você será capaz de coisas muito grandes. Mas mantenha seu coração puro e simples, para que sejam sempre coisas grandes e boas. Sem falar que, eu não preciso de um cristal para me comunicar com um titã.
Cailean aceitou o presente, maravilhado. O pôs no pescoço e talvez fosse impressão sua, mas por um segundo pode ver, ouvir e sentir ao seu redor com muito mais clareza que antes. Pôs o cristal para dentro da camisa.
– Agora coma! – disse Muireall – Nossos caminhos por enquanto terão que se dividir.
– Para onde vai daqui? – disse Cailean com metade da boca cheia de pão e acaiúras – se eu posso perguntar.
– Eu nunca sei, meu jovem, eu nunca sei – Respondeu Muireall – Mas tenho seguido uma energia muito particular. Tenho a impressão que ainda cruzarei meu caminho com Uilleam, meu único e grande amigo de tantas eras.
Cailean engoliu o pão e bebeu água.
– Muito obrigado, senhora Muireall – disse ele, fazendo uma grande reverência – continuarei na minha jornada… Eu não tenho palavras para agradecer seu presente e sua hospitalidade. E principalmente por ter me resgatado da floresta de Muire.
– Muire? Não passei por Muire estes tempos – disse Muireall, franzindo levemente a testa – Estamos nos ermos, às margens do lago Biaeë.
Cailean ficou estupefato. Andou para fora da barraca enquanto Muireall apenas o olhava. Do lado de fora, ele avistou o enorme lago. O brilho das águas encheu seus olhos e o vento sacudiu todo seu cabelo. Uma paz lhe invadiu de imediato. Sentiu-se elevado em moral e espírito. Mas então a dúvida lhe veio.
– Mas como cheguei até aqui? – perguntou ele a Muireall, que também saía de sua barraca. Ao que ela apenas sorriu levemente, com a expressão de quem descortinava uma surpresa agradável.